Era um domingo de manhã, dia lindo de sol. Estávamos no topo do Parlamento Australiano em Canberra. Lá de cima se tem uma vista ampla da cidade, montanhas, muito verde. E venta. Venta muito. As bandeiras se agitam o tempo todo,as cordas batem no mastro ansiosas, conclamando sua presença. Lá em cima, meu coração diminuia o ritmo, contemplando aquele imenso lugar, cuidado em cada detalhe. Sentimentos diversos agora se convergiam dentro de mim, buscando no horizonte algo que pudesse trazer alguma lembrança, algum marco que pudesse me trazer qualquer tipo de referencial. Não tinha. Nenhum marco, nenhuma árvore, nenhuma vegetação ou mesmo pássaros, nenhum outro rosto, ou palavra, além do meu marido, me era conhecido. Ali, naquele momento, me dei conta de que eu não tinha nehum referencial de minha vida inteira, de meu passado, minha cultura, as pessoas com quem vivi, convivi, nada mais estava presente.
Assim comecei a entender que eu dava início a um processo de desconstrução, para construir uma outra vida. Todos os símbolos, pessoas, referenciais, estavam agora dentro de mim, e não fora. Tudo o que vivi, aprendi, sonhei, estava dentro e não fora. Até então, não havia me dado conta do que isso tudo significava.
Eu e meu marido fomos a Canberra, capital da Austrália, para o aniversário de 21 anos de seu afilhado. Os pais, amigos de longuíssima data, se conhecem há quarenta anos. Os amigos de meu marido em geral tem esse tanto de anos que se conhecem. Tenho os meus amigos de 40 e mais anos, e também tenho outros de 30, 20, 10, 5, 3… Todos fazem parte da minha história. Cada pessoa, cada lugar, cada simbolo, cada sentimento. Agora isso tudo está dentro de mim. Tudo que estou vivendo desde então, agora faz parte de um novo capítulo dessa história de vida.
De repente você se dá conta de que você tem que aprender a falar, a caminhar, a pensar e se relacionar de uma nova forma, porque o que antes era um padrão aprendido, testado e aprovado, agora não tem mais validade…O que se fala, como se fala, quando se fala, é diferente…não segue o padrão conhecido. O tom de voz que você usava para expressar amor, surpresa, medo, é diferente. Sutilmente diferente, mas é diferente.
Enquanto eu estava ali, também pude comparar Brasília e Canberra…a simplicidade chocante com que o Parlamento debate as questões importantes para o povo, o processo como isso acontece, a importância que é de fato legislar a favor dos interesses do povo…é fascinante. Mas é também triste ver o quão longe o Brasil está disso, tendo tantos recursos para mudar o curso de sua história.
Essa mudança de vida, é também uma mudança de paradigma. Aqui se vive uma vida menos complexa, e nem por isso, menos completa. Apesar da natureza tão abundante que temos no Brasil, aqui as pessoas vivem mais perto dela. E esse retorno à natureza é o que na verdade me tem ajudado no processo de reconstrução de referenciais, de olhar ao redor, sentir que você faz parte de algo que você reconhece como seu. É meu também porque Deus criou a natureza para nós, e isso me inclue aqui ou em qualquer lugar do mundo. É essa sensação de pertencimento que nos faz ter equilíbrio e nos faz reconhecer um caminho a trilhar. Quando nascemos,crescemos e vivemos num mesmo lugar, ou num mesmo País, nós nos reconhecemos todos os dias no que nos cerca, na língua que falamos, nas expressões que utilizamos, e na maneria com que nos relacionamos. Mudar para um lugar cuja cultura é muito diferente da que você está acostumado, requer de você um esforço enorme de desconstrução e reconstrução. É na construção de novos referenciais que nos permitam nos reconhecer neles que começamos a construir nossa sensação de pertencimento.
Se eu pertenço, eu me reconheço. Se eu me reconheço, eu tenho referenciais sobre mim, sobre o outro, sobre o lugar, sobre as relações. Quando eu pertenço tenho o poder de atuar, de transformar, de me fazer participante. Enquanto eu não pertenço, eu permaneço como espectador.